O PAPEL DOS MILAGRES NA RELIGIÃO

Milagre não é ter Jesus Dado visão ao cego, feito falar o mudo Milagre é a gente acreditar nisto tudo.
MARIO QUINTANA

Quando ouço a voz grave de Itamar Assumpção cantar que “a cada mil
lágrimas sai um milagre”, impressiona-me o uso da metáfora para designar
uma atitude sobre-humana no que diz respeito ao quanto o choro pode
significar um verdadeiro milagre no equilíbrio das relações
interpessoais. O apóstolo São Pedro experimentou a fórmula proposta pelo
compositor no episódio logo após ter negado três vezes a Jesus Cristo e
ouvir o galo cantar, denunciando a sua consciência afetada pela atitude
vil.
Neste livro nós vamos falar de milagres. Mas não do milagre enquanto
metáfora de uma manifestação de superação humana em face aquilo que
julgava incapaz de alcançar. Nem de milagre como esforço individual em
favor da construção de sua felicidade para além das fronteiras da
limitação de suas forças. Nem tão pouco de milagre como um evento supra
ou contrário às leis da natureza. Trataremos de milagres como o maior
fenômeno no campo do sagrado, sem os quais todos os símbolos da fé caem
no vazio e perdem seu valor de significação espiritual. Rudolf Otto1,
quando estarreceu o mundo em 1917 com o seu Das Heilige, advertiu o seu
leitor condicionado pelo espírito científico antimetafísico do início do
século XX, que se ele não fosse capaz de fixar a atenção num momento em
que experimentou uma emoção religiosa profunda, se não tivesse
conhecimento das vezes em que se deparou com o sagrado, que este leitor
deveria terminar ali a sua leitura porque “com tal homem é difícil
tratar de religião”. Por tratar-se da essência da religiosidade, o tema
“milagre” exige uma postura semelhante.
Entretanto, antes de abordar este livreto, seria interessante
estabelecer algumas reflexões acerca do sagrado e de sua relação com o
fenômeno conhecido como milagre.
Para Ludwig Feuerbach2, segundo expôs na obra A essência do
Cristianismo, de 1841, milagre é a face exterior da fé e a fé a alma
interior do milagre; milagre é o único fenômeno que realiza a
onipotência da fé. A ocorrência de milagres coincide com a era em que o
Cristianismo era uma fé verdadeira, viva, prática, não falsificada, não
hipócrita. E paradoxalmente, os milagres escassearam até se extinguirem
quando a descrença predomina, motivida por uma fé morta, tímida,
despojada do elemento transcendental.
De acordo com Feuerbach, o fenômeno do milagre impõe-se na experiencia
humana a partir do desejo finalizado de modo instantâneo, do ânimo
sobrenatural e da imaginação fantasiosa. Em primeiro lugar, milagre é um
desejo sobrenatural realizado porque possibilita a realização do
impossível. A essência da fé associa-se ao que o homem deseja e o desejo
é sintoma de que ele vive privado de objetos que lhe proporcionam o
prazer que seu corpo necessita para suprir suas necessidades comuns de
sobrevivência. Assim, se ele deseja a imortalidade, logo torna-se pela
fé imortal; se deseja que exista um ser que é capaz de tudo o que é
impossível à Natureza e à Razão, logo, um tal ser existe; se deseja a
criação de um mundo que corresponda aos desejos do ânimo, sem doenças,
sem morte nem sofrimento, um mundo da subjetividade ilimitada, isto é,
da imaginação humana, este mundo concretiza-se no milagre. Numa outra
perspectiva, milagre é gerado pelo desejo humano mais forte que a
Natureza e que faz com que ele se curve.
Sem esta concepção de mundo transcendente, onde tudo é possível e nada é
impossível, os indivíduos agravam o seu estado de miserabilidade e
perdem a esperança nos acontecimentos transformadores de sua condição. O
escritor moçambicano Mia Couto observou que esta é a miséria que mais
dói, pois é quando, “confrontados com a ausência de tudo, os homens
abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros”.3
Todavia, o milagre distingue-se do modo de realizar os desejos humanos
pela via natural e racional, pois possibilita o que Feuerbach denomina o
desejo sobrenatural realizado. O exemplo alistado pelo teólogo Baviera é
Abraão, o qual desejava a realização de sua descendência, mesmo sendo
sua esposa Sara estéril e ambos avançados em idade. A concessão da
gravidez a Sara, antes que fruto do sexo natural de ambos, é o resultado
da fé de Abraão em um Deus cuja ação, segundo Rudolf Bultmann, designa o
caracter específico do milagre, a despeito das contrariedades impostas
pela Natureza, pois tal ideia está eliminada. C.S Lewis, ainda que
conceituasse milagre como “uma intervenção na natureza mediante poder
sobrenatural”4, aproxima- se de uma visão semelhante à do pensador
alemão ao conceber o conceito de milagre desvinculado da simples ideia
de oposição aos elementos naturais.
Em segundo lugar, o milagre relaciona-se à anima humana.Há uma
circularidade no fenômeno do milagre. É do ânimo que ele provém, é ao
ânimo que ele retorna. O milagre é reconfortante porque satisfaz os
desejos do homem sem trabalho, sem esforço. O trabalho é desagradável,
descrente, racionalista,porque dele o homem faz depender a sua
existência da atividade finalizada. Diante do milagre, todavia, apontou
Schleiermacher; intensifica-se “ a consciência de nossa dependência, da
nossa impotência, da nossa limitação devido ao conjunto das condições no
meio das quais nos encontramos”5.Assim, deparamo-nos com o nosso estado
de criatura e experimentamos o sagrado que atua em nós e por nós.
Depois, em terceiro lugar, o combustível embrionário da execução do
milagre é a imaginação. De certa forma, é o estabelecimento do
inconformismo com uma ordem estabelecida e a busca de um mundo utópico
em que o homem pode retomar sua readaptação a um mundo ao qual
anteriormente se viu distanciado. Em outras palavras, o poder do milagre
é acima de tudo o poder da imaginação e, por isso mesmo, age de forma
tão confortante no ânimo do indivíduo, pois a fantasia é suficiente para
lançá-lo no absolutamente ilimitado, infinito e intangível.
Finalmente, ainda a partir dos postulados de Feuerbach, o milagre não
está preso a nenhuma barreira, a nenhuma lei. A sua marca é a
impaciência, ou seja, o desejo humano ocorre sem demora,
instantaneamente, de um só golpe, sem qualquer impedimento. Que doentes
sejam curados não evidencia um milagre, mas que sejam curados
imediatamente por um mero decreto, aí sim nós temos a evidência do
milagre. Que um povo consiga expurgar os sinais da desigualdade social e
das injustiças não caracteriza milagre algum; é “tão somente” a execução
do sonho bíblico da instalação do reino de Deus. Mas que este mesmo povo
seja instantaneamente transformado em uma comunidade justa e
igualitária, aí o milagre se consumou. O objetivo do milagre, então, é
estabelecer a unidade imediata do desejo e do seu cumprimento imediato.
A atividade milagrosa é uma atividade finalizada, isto é, reivindica ao
mesmo para o milagre uma origem e uma finalidade humanas. O milagre é
sem sentido, é impensável para a razão, pois seria uma ilusão supor a
possibilidade de representação por meio dos sentidos. No milagre da
transformação da água em vinho, por exemplo, o elementos mantêm a
identidade dos dois predicados ou sujeitos absolutamente contraditórios.
A transformação dos elementos oculta a contradição e introduz nela a
representação natural da alteração da ordem das coisas. Tal alteração
ocorre de forma absoluta e instântanea.
Podemos também destacar o elemento aterrador e sublime que o milagre
produz na criatura, ao manifestar um poder frente ao qual nada
subsiste. Isto evidencia o aspecto sagrado que indubitavelmente
caracteriza a manifestação do milagre. No milagre se contrói a
experiência sagrada do numinoso, à qual Otto denominou misteryon
tremendum. Para ele, no sagrado o sentimento de estado de criatura é
apenas um elemento subjetivo concomitante, um efeito, a sombra de
outro sentimento, o de terror, que se relaciona com um objeto existente
fora do eu. É a esfera onde se conjuminam o sublime, o majestoso, o
assombroso, o fascinante, o terrível. Fora da recorrente discussão sobre
o aspecto antinatural que caracteriza a ação milagrosa, é o efeito
numinoso, sagrado, que desperta a crença nos milagres e o fascínio por
suas narrativas.
Neste ponto das nossas reflexões, é interessante retomarmos a
contribuição de Baruch de Espinosa em seu Tratado Teológico-Político, de
1670, especialmente o capítulo “Dos Milagres”. Neste texto, deslocando o
milagre do campo religioso para o campo filosófico, ele pôde discutir a
questão sob crivo racional, propondo a abordagem de três aspectos
relevantes: as razões porque a crença em milagres é tão difundida no
mundo cristão; as razões porque, do ponto de vista da racionalidade, os
milagres inexistem ou são impossibilitados; e, finalmente, as razões
porque as narrativas de milagres assumem um estilo tão distinto em
relação aos relatos.
Para o filósofo holandês, a compreensão popular de milagre enquanto uma
ocorrência contrária ao fluxo da Natureza esbarra na negação da própria
essência do ser divino, uma vez que implicita uma concepção equivocada
da Natureza e da relação desta com Deus. Por este prisma, na verdade
milagre acaba por ser tudo aquilo que foge ao conhecimento humano em
dado momento, evidenciando mais a ignorância humana acerca dos fenômenos
da natureza do que a ação divina em oposição às suas leis. Desta forma,
o milagre se dá na proporção em que desconhecemos as regras de
funcionamento da configuração natural e, por outro lado, deixa de
existir à medida que dominamos as suas leis. Por exemplo, aquele doente
cujos sintomas apontam para um diagnóstico de derrame cerebral,
inclusive com a perda das faculdades motoras e da comunicabilidade
integral, é repentinamente curado deste mal, como resposta às orações
fervorosas de sua comunidade cristã: é um milagre! Todavia, um
aprofundamento no exame do paciente comprova tratar-se de uma
hipoglicemia, motivada pela ministração equivocada de medicamentos para
diabéticos a uma pessoa com taxa normal de açúcar no sangue. É claro que
neste caso o milagre desejado pelos membros da comunidade não passaria
de uma impostura ou, pior ainda, uma forma de livrar algum médico
inescrupuloso de suas responsabilidades. Desta forma, como afirma Chauí,
“a crença no milagre põe no exterior o que é apenas experiência interior
do não identificado, transformando em fato [milagroso] o que é carência
de conhecimento”6.
Entretanto, o desejo ardente por uma intervenção sobrenatural que
evidencie a atuação da potência divina, associado à eficácia do
imaginário humano sedento de realizações, cria a fórmula capaz de
estabelecer a realização do milagre. Por conseguinte, possibilita a
revitalização de toda uma comunidade cristã ao mesmo tempo oprimida pela
secularização em que vive, e carente de um despertamento da fé singela
dos primórdios do cristianismo, quando tudo era explicável por meio do
milagre.
Postura semelhante encontramos no imaginário do velho jagunço Riobaldo,
o narrador-protagonista de Grande Sertão: Veredas, novela de Guimarães
Rosa, tentando explicar o grande milagre de estar vivo após algumas
décadas de enfrentamento com tiroteios, ciladas, pestes, traições, etc.:
“Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o
mundo se resolve. […] Tendo Deus, é menos grave se descuidar um
pouquinho, pois no fim dá certo.”
A narrativa da vida sob a ação do milagre confere uma proximidade
imediata com o divino, imprimindo à existência humana a agradável
sensação de que sua manutenção não depende das próprias forças do homem,
mas pode descansar na intervenção de Deus. Como no “Guardador de
Rebanhos”, poema de Alberto Caeiro/Fernando Pessoa, quando o menino
Jesus, a eterna criança, para encobrir da mãe e do pai algumas
traquinagens, “foi à caixa dos milagres e roubou três/[…] depois fugiu
para o sol/ E desceu pelo primeiro raio que o apanhou”. Que agradável
sensação é viver quando se tem à disposição uma caixa de milagres, para
junto da qual podemos correr em busca de solução imediata por meio da
realização dos impossíveis!
Enfim, para além de pretender explicar tudo isto – “um milagre” com o
qual este livreto não deseja lidar e cujo reducionismo afetaria a
extensão do tema
–, o objetivo da retomada da discussão deste assunto é construir a
utopia, resgatar o sonho, retomar a possibilidade das coisas
classificadas até então como impossíveis, reagir diante de uma sociedade
que arvora expurgar o sagrado da existência, tornando- a menos agradável
e, por isso mesmo, mais “perigosa”.

Prof. Jaime dos Reis Sant’Anna (in Memoriam)
extraído do Livro Milagres, princípios de Interpretação do Novo
Testamento de Rudolf Bultmann.

Notas
1 OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70 (Coleção Perspectivas do
Homem), 1992, p.17
2 FEUERBACH,Ludwig. A essência do cristianismo. Lisboa: Fundação
Calouste
Gulbenkain, 1994, pp. 151 – 160
3 COUTO, Mia. Vozes anoitecidas. Lisboa: Editorial Caminho, 1986, 5ª.
Edição, p.19
4 LEWIS, C.S. Milagres: um estudo preliminar. São Paulo: Ed. Mundo
Cristão,
1984, p.7
5 SCHLEIERMACHER, Friedrich. The Christian Faith. New York Harper &
Row, 1963, p.127
6 CHAUÍ, Marilena. A nervura do real: imanência e liberdade em
Espinosa.
São Paulo: Cia. Das Letras, 1999, p.195.

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